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cultură şi spiritualitate

evereste

Enquanto o Sol nasce sobre o planalto  do Tibete,  Pasang  Kaji Sherpa (à frente) e Lhakpa Tenje Sherpa ultrapassam os 8.750  metros de altitude no Evereste. A grande pergunta: terão George Mallory e Sandy Irvine chegado tão longe ou talvez até atingido topo em 1924?

Há quase um século, Sandy Irvine e o seu parceiro de escalada George Mallory desapareceram na aresta nordeste do Evereste. Terão alcançado o topo 29 anos antes de Edmund Hillary e Tenzing Norgay serem aclamados como os primeiros a escalar o pico mais alto do mundo? O autor e a sua equipa refizeram os passos de Irvine numa tentativa de encontrar o seu corpo… e a câmara que poderia reescrever a história da montanha.

Texto:  Mark Synnott
Fotografias: Renan Ozturk

“Não faças isso”,disse-lhe. “Estás demasiado cansado. Não vale a pena.”

Jamie McGuinness, o nosso guia e líder da expedição, olhou-me fixamente com os olhos encovados e raiados de sangue. Retirara a máscara de oxigénio e os óculos escuros. A barba cinzenta cobria-lhe o queixo.

Estávamos sentados sobre uma pilha de rochas a 8.440 metros de altitude, na aresta nordeste do Evereste – o lado chinês, longe das multidões do Nepal. Cem metros abaixo de nós, ficava o ponto de coordenadas de GPS que poderia resolver um dos maiores mistérios do montanhismo.

Novas investigações indicavam que o lendário explorador britânico Andrew “Sandy” Irvine poderia ter caído e parado ali. Estaria o seu corpo ainda no local?

Há quase um século, enquanto descia esta cumeada, Irvine e o seu parceiro de escalada, George Mallory, desapareceram. Desde então, o mundo interroga-se se um, ou ambos, poderão ter alcançado o cume nesse dia, 29 anos antes de Edmund Hillary e Tenzing Norgay serem reconhecidos como os primeiros a chegar ao cume do Evereste. Pensa-se que Irvine transportava uma máquina fotográfica Vest Pocket Kodak. Se fosse encontrada e tivesse fotografias do cume, a história do pico mais alto do mundo seria reescrita.

Examinei o terreno em redor. Havia uma série de escarpas, pequenas e íngremes, ensanduichadas entre plataformas cobertas de neve e detritos numa zona de rocha de tom claro, conhecida como Faixa Amarela (Yellow Band). Quatro mil metros abaixo, a planície árida do planalto do Tibete reluzia como uma miragem.

Eu mal dormira nas últimas 48 horas e sentia-me fraco e enjoado devido à altitude extrema. Desde que saíra do Acampamento-Base Avançado, a 6.400 metros, três dias antes, só conseguira engolir alguns pedaços de caril liofilizado, um punhado de cajus e uma única dentada de um chocolate no cume do Evereste – que vomitei em seguida. Estava muito cansado e o meu cérebro privado de oxigénio implorava-me que me deitasse e fechasse os olhos. Contudo, um resquício de lucidez e o bom senso diziam-me que, se o fizesse, poderia nunca mais acordar.

Algumas rochas pequenas mexeram-se lá em cima. Olhei e vi o fotógrafo Renan Ozturk a descer a cumeada na nossa direcção. Tinha o braço enrolado na finíssima corda roxa fixa que funcionava como o nosso cordão umbilical até ao cume, onde estivéramos várias horas antes. Ozturk deslizou até parar e caiu no chão ao meu lado. Virei-me para ele. “O que achas?”

Ofegante, com o peito a arfar pesadamente, não me respondeu logo. Quando finalmente recuperou o fôlego, ouvi a sua voz abafada através da máscara de oxigénio: “Devias ir.”

Acedi com a cabeça, soltei-me da corda e dei os primeiros passos hesitantes, descendo a saliência rochosa inclinada.

Assim que larguei a corda, Lhakpa Sherpa gritou, “Não, não, não!”

Acenei-lhe com a mão. “Só preciso de fazer uma confirmação. Não vou afastar-me muito.”

Mas ele implorou que parasse. “Muito perigoso, muito perigoso!”

Jamie sabia que bastava eu escorregar nos seixos soltos e poderia cair ao longo de dois mil metros até ao glaciar Rongbuk. Parte de mim concordava com ele e queria desistir. Após décadas de montanhismo em todo o mundo, prometera a mim próprio nunca transpor o limite em que o risco objectivo se tornava excessivo.

No entanto, ignorei Jamie McGuinness, Lhakpa e a minha própria promessa. O apelo do mistério do desaparecimento de Irvine era demasiado forte.

Há muito que eu conhecia a teoria segundo a qual Mallory e Irvine poderiam ter sido os primeiros a escalar o Evereste.

No entanto, só ficara com a febre de encontrar Irvine dois anos antes, depois de uma palestra proferida pelo meu amigo Thom Pollard, um veterano do Evereste que vive a poucos quilómetros de minha casa.

Ele telefonou-me mais tarde. “Não estás mesmo convencido de que podes encontrá-lo ou estás?” perguntei-lhe.

Ele riu-se. “E se eu tivesse uma informação vital que mais ninguém tem?”

“Por exemplo?”, interroguei.

Ele fez uma pausa de alguns segundos. “A localização exacta do corpo.”

Thom fora operador de câmara na Expedição de Pesquisa Mallory e Irvine, em 1999, durante a qual o alpinista americano Conrad Anker encontrou os restos mortais de George Mallory nesta zona da vertente norte do Evereste, onde poucos alpinistas se aventuraram até à data.

evereste

O desafio. Os britânicos organizaram três expedições ao Evereste na década de 1920, na esperança de serem os primeiros a alcançar o cume. Na recta final da expedição de 1924, George Mallory e Sandy Irvine desapareceram. Ninguém sabe se chegaram ao pico, uma circunstância que, a comprovar-se, reescreveria a história do montanhismo. Uma expedição organizada pela National Geographic em 2019 procurou respostas, mas o mistério permanece por resolver.

As costas de Mallory estavam completamente expostas e a sua pele preservada apresentava-se tão limpa e branca que parecia uma estátua de mármore. A corda que trazia atada à cintura, entretanto cortada, deixara-lhe marcas no tronco, um indício de que, a dada altura, Mallory deverá ter sofrido uma queda aparatosa. O que mais me impressionou foi a forma como a perna esquerda estava cruzada sobre a direita, que se partira acima da parte superior da bota, como se Mallory estivesse a proteger o membro ferido. Independentemente do sucedido, parecia evidente que Mallory permanecera vivo, ainda que por pouco tempo, ao cair no sítio do seu descanso final.

No início, Conrad e os seus colegas presumiram que o corpo pertencia a Sandy Irvine porque foi encontrado quase directamente abaixo do local onde o piolet de Irvine fora descoberto na cumeada, quase uma década depois de ele e Mallory desaparecerem. Estaria Mallory atado a Irvine quando caiu? Se sim, como se partira a corda e por que razão Irvine não fora encontrado nas imediações?

Outros pormenores suscitaram ainda mais questões. Os óculos de lentes verdes de Mallory foram encontrados no seu bolso. Significaria isso que ele descera de noite, altura em que não precisaria deles? O seu relógio de pulso parara entre a uma e as duas horas, mas seriam da manhã ou da tarde? Mallory dissera que, se chegasse ao cume, deixaria a fotografia da sua mulher lá em cima. Não fora encontrada qualquer fotografia dela no corpo.

Também não havia vestígios da máquina fotográfica, o que levou muitos historiadores do Evereste a concluir que poderia estar na posse de Irvine. A hipótese faz sentido, tendo em conta que ele era melhor fotógrafo e saberia que o público britânico esperaria fotografias do seu Galahad (a alcunha dada a Mallory pelos seus admiradores) e não do seu parceiro menos conhecido.

máquina fotográfica

A máquina fotográfica Vest Pocket Kodakque Irvine transportaria consigo em 1924, nunca foi recuperada.

A última pessoa a vê-los foi o seu colega de equipa Noel Odell, que parou por volta da cota dos 8.000 metros no dia 8 de Junho de 1924, para contemplar o cume. Às 12h50, as nuvens rodopiantes levantaram-se momentaneamente, revelando Mallory e Irvine “a subirem expeditamente” a cerca de 250 metros do cume, relatou Odell.

“Os meus olhos fixaram-se na silhueta de uma minúscula mancha negra numa pequena crista de neve”, escreveu Odell no seu relatório de 14 de Junho. “Então, a primeira aproximou-se do grande degrau de rocha e, pouco depois, emergiu no topo. A segunda fez o mesmo. Depois, aquela fascinante visão desapareceu, envolta de novo numa nuvem.”

Até agora eu resistira à ideia de escalar o Evereste, desmotivado por histórias sobre as multidões e a transferência de risco para a equipa de apoio, constituída maioritariamente por sherpas que carregavam o peso de todos os egos sobre os seus ombros e, por vezes, pagavam com a vida quando Qomolangma (o nome tibetano da montanha) mostrava o seu descontentamento com tempestades, terramotos e avalanchas.

Essa era uma das razões pelas quais eu nunca percebi a obsessão de Thom Pollard com o pico. No entanto, à medida que falávamos, a história de Mallory e Irvine intrigava-me cada vez mais. Pollard falou-me de Tom Holzel, um escritor e entusiasta do Evereste de 79 anos que passara mais de quatro décadas a tentar resolver este mistério.

Em 1986, Thom liderara a primeira expedição em busca de Mallory e Irvine na companhia de Audrey Salkeld, uma proeminente historiadora do Evereste. Contudo, nevões invulgarmente fortes naquele Outono impediram a equipa de subir suficientemente alto pelo lado chinês da montanha. O corpo de Mallory foi posteriormente encontrado a 35 metros do local proposto por Tom Holzel.

evereste

Vestidos para o cume. Tecidos e materiais avançados tornam os equipamentos de altitude agora disponíveis mais fortes, quentes, leves e fiáveis do que a tecnologia e o vestuário de que Mallory e Irvine dispunham em 1924. Mesmo assim, o seu equipamento, muitíssimo influenciado pelos exploradores polares, era considerado de ponta na altura.

A sua ideia seguinte foi utilizar uma fotografia a.érea captada no âmbito de um projecto cartográfico do Evereste financiado pela National Geographic para tentar descobrir o local exacto da montanha onde um alpinista chinês dissera ter visto o corpo de Irvine. Xu Jing era líder-adjunto da expedição chinesa que concretizara a primeira subida ao Evereste pela vertente Norte, em Maio de 1960. Segundo o seu relato, depois de desistir de alcançar o cume, Xu seguiu por um atalho ao longo da Faixa Amarela e viu um cadáver antigo dentro de uma fenda a 8.300 metros de altitude. À data deste avistamento, as únicas duas pessoas que tinham morrido àquela altitude na vertente norte do Evereste tinham sido Mallory e Irvine. Quando Xu apresentou o seu relato, em 2001, os restos mortais de Mallory já tinham sido encontrados num ponto mais abaixo da montanha.

Quando eu e Thom Pollard visitámos Tom Holzel em Dezembro de 2018, ele mostrou-nos a sua ampliação com 2,5 metros da fotografia: havia apenas uma rota que parecia compatível com o atalho de Xu. Através de um processo de eliminação de hipóteses e de uma análise pormenorizada das caraterísticas do terreno, Tom reduzira as opções a uma única fenda que acreditava ser o local onde se encontrava o corpo de Irvine e determinara a latitude e longitude exactas desse ponto.

Apontei para o círculo desenhado na fotografia. “Qual a probabilidade de ele estar mesmo aqui?” “Não é possível que não esteja”, disse Tom.

De mais do que uma forma, foi por mero acaso que Irvine chegou ao Evereste.

O jovem tímido e atlético de 21 anos ainda estava a estudar em Merton College, na Universidade de Oxford, quando o Comité do Monte Evereste o convidou para se juntar à expedição em 1923. Ao contrário dos membros mais experientes da equipa britânica, Irvine tinha pouca experiência de escalada.

No entanto, quando o grupo chegou à montanha, o membro mais jovem da equipa conquistara o respeito dos seus colegas de equipa e revelara a sua utilidade, redesenhando completamente o seu moderno equipamento de oxigénio.

Alguns meses antes da nossa própria expedição, em 2019, desloquei-me a Inglaterra para visitar o Arquivo Sandy Irvine, em Merton. Por coincidência, o meu avô frequentara Merton alguns anos depois de Irvine. O arquivo é constituído por 25 caixas de documentos, fotografias e outras recordações, incluindo o diário do Evereste, de Irvine, recuperado na montanha após o seu desaparecimento. Com cerca de 20 centímetros de comprimento, 13 de largura e uma capa de tecido preto, o caderno capta o entusiasmo juvenil de Irvine.

piolet

Descoberto em 1933, este piolet foi reconhecido como propriedade de Irvine devido aos entalhes na madeira.

O arquivista Julian Reid trouxe-me um livro, pousando-o sobre uma esponja protectora. Folheou-o até à última entrada e disse-me: “Quando o leio, fico com os pêlos da nuca arrepiados.”

Irvine rabiscou esta última entrada na noite de 5 de Junho, quando ele e Mallory estavam acampados a 7.000 metros de altitude no Colo Norte. Ele queixou-se no diário de que a sua pele clara estalara e empolara por causa do sol. “A minha cara está em total agonia. Preparei dois aparelhos com oxigénio para a nossa partida amanhã de manhã.” Tive a mesma reacção de Julian Reid ao ler as palavras de Irvine, juntamente com uma profunda sensação de tristeza. Quando desapareceu, Irvine tinha a mesma idade do meu filho mais velho.

Antes de podermos partir em busca de Irvine, tivemos de aclimatar-nos à altitude e testar as nossas armas secretas: uma pequena frota de drones.

Ozturk, cineasta talentoso, é também um autoproclamado “fanático dos drones” e esperava utilizar estes veículos aéreos não tripulados para explorar o local conhecido como fenda de Irvine e toda a vertente norte da montanha.

No dia 1 de Maio de 2019, a nossa equipa sentou-se em redor de uma mesa na tenda de jantar, empoleirada numa plataforma a 6.400 metros de altitude no Acampamento-Base Avançado.

“É um ciclone de Categoria 4”, disse Jamie McGuinness, apontando para um remoinho de cores vibrantes na baía de Bengala no seu computador portátil. “Pode largar 30 centímetros de neve em cima de nós nos próximos dias.”

O nosso plano era largar os drones no Colo Norte no dia seguinte, mas Jamie mostrou-se céptico. “Pode ficar demasiado vento lá em cima.”

E tinha razão. Um dia e meio mais tarde, sopravam rajadas tão fortes no Colo Norte que Ozturk nem sequer conseguiu que o drone completasse o voo de regresso. Teve de aterrá-lo nas proximidades e ir buscá-lo.

Irvine

Irvine fez ajustes ao equipamento de oxigénio da equipa até aos seus últimos dias na montanha, redesenhando-o para o tornar mais leve e menos propenso a
fugas ou rupturas.

Nessa noite, juntámo-nos na tenda enquanto a tempestade agravava. Encontrávamo-nos 600 metros acima do Acampamento-Base Avançado, eu desenvolvera uma tosse dolorosa e sentia-me apático e ligeiramente enjoado, como se tivesse uma mistura de gripe e ressaca. À medida que a dor de cabeça aumentava, o mesmo acontecia ao vento. Antes da meia-noite, ouvi um ruído semelhante ao de um 747 a levantar voo sobre as nossas cabeças. Alguns segundos depois, a tenda foi espalmada e eu fiquei preso ao solo pela mão de um gigante invisível. O vento soprou apenas durante alguns segundos até a tenda recuperar, mas eu sabia que a rabanada se repetiria.

Nas horas seguintes, a tempestade foi aumentando de intensidade até que, por volta das 2 horas, uma rajada de vento esmagou a minha cabeça de encontro ao solo e senti o queixo contra o gelo por baixo da tenda. O uivo furioso prendeu-nos ao solo durante 20 ou 30 segundos e lembro-me de pensar com os meus botões: Será assim que nos sentimos mesmo antes de morrer? As varetas da tenda partiram--se enquanto fragmentos denteados do poste partido rasgavam o nylon amarelo, reduzindo-o a tiras. Rezei para que as estacas de bambu que nos fixavam à montanha aguentassem.

Quando o Sol, finalmente, nasceu, os meus dois companheiros jaziam a meu lado, enrolados em posição fetal, e eu toquei-lhes nas pernas para confirmar que ainda estavam vivos. Quando rastejei para fora da tenda, todas as tendas estavam esmagadas e partidas e uma, que levantara voo como um papagaio, voava pelos ares 150 metros acima de nós.

Olhei de relance para a cumeada e vi um grupo de alpinistas indianos a descer em direcção ao nosso acampamento enquanto éramos fustigados por outra rajada de vento. De repente, todos desataram aos gritos. Havia quatro pessoas penduradas no rebordo de uma parede de gelo de 300 metros. Um membro da nossa equipa mergulhou sobre a estaca que fixava a extremidade mais próxima da corda que os segurava e bateu-lhe com o piolet para a fixar, enquanto os outros usavam uma segunda corda para puxar os alpinistas até local seguro.

“Vamos sair daqui para fora”, disse.

Tivemos mais sorte com os drones uma semana mais tarde. Num esforço de desenvolver acções de busca a partir do ar na Faixa Amarela, subimos ao Colo Norte e Ozturk lançou um drone em direcção ao cume. Quando o vento começou a aumentar de intensidade, durante a tarde, ele já captara 40 imagens de alta resolução da área de busca, incluindo um plano do local proposto por Holzel.

evereste

Em 1924, dois sacos-cama na neve deram a entender aos companheiros de Mallory e Irvine que não havia mais esperança de encontrar qualquer um deles.

Numa das fotografias, detectei a fenda, mas não consegui observar o interior. Estaria o corpo de Irvine lá dentro? Estávamos a ficar sem tempo para descobrir.

A primeira janela de oportunidade para alcançar o cume abriu no dia 22 de Maio, enquanto esperávamos no Acampamento-Base Avançado. Após duas viagens ao Colo Norte, encontrávamo-nos agora completamente aclimatados, prontos para partir para a zona de busca, no alto da aresta nordeste. No entanto, estávamos longe de estar sozinhos na montanha. Mais de 450 pessoas preparavam-se para empreender a subida pelo lado nepalês da montanha. Esperavam-se igualmente cerca de 200 ascensões do lado chinês. Jamie olhou para esta multidão sedenta de chegar ao cume e disse que aguardaríamos a próxima janela de oportunidade.

Ao longo dos dias seguintes, nove pessoas perderam a vida no Evereste: sete na vertente sul e duas na vertente norte (outras duas tinham morrido uma semana antes na vertente sul, elevando o total a 11). Nunca me esquecerei da sensação de impotência de ver, através de um binóculo, uma fila indiana com cerca de duas centenas de alpinistas esperançosos dirigindo-se com dificuldade para o cume e de receber relatos pela rádio sobre algumas das almas infelizes que nunca regressariam para junto das suas famílias.

Na tarde de 23 de Maio, sentámo-nos com a equipa de apoio de escalada para discutir a logística da busca. Jamie assegurara-nos que a equipa conhecia o nosso plano, mas aparentemente ocorrera uma falha de comunicação. Quando descrevi a nossa estratégia de busca pelo corpo de Irvine na Faixa Amarela, eles lançaram as mãos ao ar e começaram a discutir em nepalês.

“Não vamos ao cume?”, perguntou Lhakpa Sherpa. “Grande problema.”

Ozturk traduziu-nos o resto. Em primeiro lugar, a equipa de apoio não queria que nos servíssemos das cordas fixadas pelos chineses. Era demasiado perigoso e infringia as instruções oficiais, disseram. Em segundo lugar, o cume era importante para eles. Alguns dos novatos da nossa equipa nunca tinham subido ao topo do Evereste. Em terceiro lugar, eles queriam passar o mínimo de tempo possível no Acampamento III, que se situa a cerca de 8.200 metros, na chamada Zona da Morte, onde a atmosfera é demasiado rarefeita para os seres humanos sobreviverem durante muito tempo. “Muito perigoso para todos”, disseram.

Virei-me para Jamie McGuinness. “E então? Achei que lhes tinhas falado sobre a busca.”

Ele encolheu os ombros. Mal conseguia falar por causa de uma laringite. Disse que tinha efectivamente discutido o plano, pelo menos com parte da nossa equipa de apoio, em Katmandu.

Não havia como contornar o facto de estarmos numa situação periclitante com a nossa equipa de apoio, que totalizava 12 homens. E ninguém tinha ilusões sobre a possibilidade de escalarmos a montanha sem eles. Como praticamente todas as equipas, dependíamos do seu apoio e a nossa expedição estaria condenada se eles se fossem embora.

“Se escalarmos o cume, posso desviar-me da rota estabelecida para procurar a fenda de Irvine à ida ou no regresso?”, perguntei a Jamie.

“Será melhor no regresso”, respondeu-me. Além disso, naquele sentido, o terreno apresentar-se-ia tal como Xu Jing o viu em 1960, quando afirmou ter vislumbrado o corpo.

Quando chamámos Lhakpa para conversar connosco na tenda de jantar e lhe dissemos que íamos ao cume, ele anuiu e disse OK em nepalês. Ninguém mencionou explicitamente a possibilidade de eu me afastar do grupo na descida, mas presumi que Lhakpa percebera, tendo em conta que lhe disséramos, poucos minutos antes, que era esse o nosso objectivo principal. O nosso plano pareceu-nos uma solução de compromisso razoável.

Oito dias mais tarde, a nossa equipa chegou ao tecto do mundo e iniciou a descida. Lhakpa, que seguia em último lugar no grupo, observou-me cuidadosamente enquanto eu estudava o terreno e consultava frequentemente o meu GPS. Quando me soltei da corda a 8.440 metros, ele gritou: “Não, não, não!”

Fiquei parado, tentando decidir o que fazer. Lá no fundo, eu sabia que era errado ir contra a vontade de Lhakpa e que estava a comportar-me como mais um ocidental egoísta. Se eu caísse ou desaparecesse, Lhakpa teria a obrigação de ir procurar-me. E se eu morresse, ele teria de explicar às autoridades chinesas o que acontecera. Mais importante ainda: neste ponto da escalada, eu sentia que ele se preocupava genuinamente comigo. O sentimento era mútuo. Mas eu sabia que era capaz. E que Lhakpa me perdoaria esta imprudência.

Segundo o GPS, a fenda de Irvine encontrava-se agora a poucos passos. Enquanto Lhakpa e os outros olhavam em frente, segui por uma saliência estreita coberta por placas de calcário solto que cobriam o solo como lajes de pavimento. Um metro adiante, pisei uma delas, que escorregou sob o meu pé, e vacilei.

“Tem cuidado”, gritou Ozturk.

Percorridos cerca de 30 metros, olhei para baixo e vi uma vala pouco profunda numa faixa rochosa íngreme na saliência de gelo abaixo. Lembrava-me vagamente de ter visto esta característica geomorfológica nas fotografias do terreno captadas pelo drone. Seria por aqui o atalho de Xu na Faixa Amarela?

Virei-me para a encosta, assumindo a posição de alguém que vai descer por um escadote e enfiei a ponta do meu piolet na neve, rija como rocha. Olhando para baixo, entre as pernas, apercebi-me do vazio vertiginoso existente entre mim e o glaciar, lá no fundo. Várias centenas de metros abaixo de mim ficava o terraço de neve onde Mallory fora encontrado. Eu estava agora quase directamente acima do local onde ele morrera. Consultei de novo o meu GPS. A seta da bússola apontava para noroeste. Mais quinze metros.

Depois de descer alguns metros, fiz uma pausa num bloco estilhaçado de calcário castanho pálido. A ravina tinha cerca de 2,5 metros de altura e era tão íngreme como um escorrega. Não teria muita importância noutro sítio qualquer, mas aqui em cima, no meu estado esgotado, sozinho e sem uma corda, senti-me assustado. A prudência mandava-me voltar para trás, mas a curiosidade era mais forte. Com a picareta ainda cravada na neve, desci para a rocha. Os grampos das botas escorregaram, fazendo um ruído semelhante ao de unhas a arranharem um quadro de ardósia.

Chegado ao fundo da ravina, respirei profundamente. Três metros à minha direita estava uma pequena reentrância envolvida por uma parede rochosa. A meio da parede havia uma risca de rocha castanho-escura com uma fenda estreita. O GPS dizia que eu chegara. Foi então que me apercebi: a rocha escura era a “fenda” que eu vira com o drone. Aparentemente, era uma ilusão de óptica. A fenda ao centro tinha 23 centímetros de largura. Era demasiado estreita para uma pessoa poder rastejar para o interior. E estava vazia. Ele não está aqui.

A vertente era demasiado íngreme para eu me sentar, por isso fixei o pé direito de lado num pedaço de neve e encostei o joelho esquerdo à montanha. Debruçado sobre o meu piolet, com o queixo encostado ao peito, inalei profundamente o oxigénio da minha máscara, tentando dissipar a neblina da minha mente. Quando olhei novamente para cima, pestanejando sob o sol do meio-dia, a fenda continuava vazia. Lá no alto, o cume reluzia contra um céu azul pálido, imutável e indiferente, como sempre, àqueles que procuravam desvendar os seus segredos.

Tínhamos seguido todas as pistas e vasculhado as encostas da montanha com drones e eu arriscara a vida para resolver um dos maiores mistérios do Evereste. E tal como acontecera a todos os outros que o tentaram, chegámos ao fim com mais perguntas do que respostas. O que acontecera a Irvine naquele dia? Onde se encontraria o local do seu repouso final? Teria alguém retirado o seu corpo da encosta, ou a corrente de jacto, ou uma avalancha, haviam-no arrebatado para o esquecimento?

Eu não tinha resposta para nenhuma destas perguntas. No entanto, aprendera algo sobre a atracção exercida pelo Evereste, que leva as pessoas a esforçarem-se tanto: se não tivesse seguido os passos de Sandy Irvine, nunca o teria feito sozinho. Só posso afirmar, com total certeza, que o mistério de Mallory e Irvine continuará a subsistir, talvez para sempre. E não há qualquer problema nisso. 

Nota: Esta edição contou com a revisão técnica da Federação Portuguesa de Montanhismo e Escalada.

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