Em apenas 40 anos, a população do concelho de Oleiros diminuiu para menos de metade. O ecoturismo pode ser uma luz de esperança.

A viagem até Oleiros faz-se primeiro por auto-estradas e depois por sinuosas estradas ladeadas por pinheiros e eucaliptos a perder de vista. No caminho, não consigo deixar de pensar no paradoxo de a região onde se situa o centro geodésico de Portugal ser simultaneamente ultraperiférica. A distância que separa Oleiros da capital é semelhante à distância ao Porto e a região não fica a caminho de lado nenhum. Desde a última vez em que calcorreei as ruas de Oleiros que encerrou aquela que era uma pequena, mas importante indústria do concelho: até 2013, eram aqui fabricados os bonecos de peluche de um dos mais antigos fabricantes germânicos. A transferência da unidade para a Tunísia deixou mais de uma centena de trabalhadores no desemprego. Aos que ainda resistem ao desafio da interioridade, resta-lhes o sector dos serviços, já que a indústria, a agricultura e até as florestas se tornaram pouco competitivas. Se o concelho enfrenta desafios difíceis, o que dizer daquela que é provavelmente a sua freguesia mais periférica, Orvalho? Em 2003, estive perto daqui, em Almaceda, quando um enorme incêndio pintou o firmamento nocturno de tons carmim. Os incêndios de grandes dimensões não são invulgares aqui. São eles os protagonistas da paisagem e as suas cicatrizes são omnipresentes.

aldeia do orvalhoaldeia do orvalho


A aldeia de Orvalho é a sede da freguesia com o mesmo nome. A GeoRota do Orvalho parte junto da Igreja Matriz.

Uma derradeira curva flanqueia a garganta quartzítica que a ribeira do Orvalho esculpiu ao longo de milhares de anos e a aldeia de Orvalho revela-se. Na freguesia de 35 quilómetros quadrados, residem 638 pessoas e a maioria vive na aldeia com o mesmo nome. O casario espraia-se na sombra do Penedo das Sardas. Lá no alto, a 660 metros de altitude, o miradouro oferece uma perspectiva magnífica sobre o maciço central e o vale do Zêzere e propõe uma lição de geologia. É difícil a um leigo imaginar que o solo que se eleva agora nas alturas era há 480 milhões de anos um fundo marinho. Se dúvidas existissem, bem lá no alto, gravadas numa laje de pedra, são visíveis as galerias fossilizadas que poliquetas ancestrais deixaram na sua passagem pelos sedimentos marinhos. Mais a sul, a crista de rochas paleozóicas eleva-se ainda mais alto até aos 915 metros. A serra do Muradal evoca uma disposição geológica que se assemelha a uma muralha que acompanha a cumeada numa configuração tipicamente “apalachiana”. Estas semelhanças não são apenas coincidência, já que esta serra partilha um passado comum com a famosa cordilheira do Novo Mundo e com o momento em que a Laurásia colidiu com Gonduana e formaram o supercontinente Pangeia. É este património partilhado que faz que os trilhos marcados neste território integrem hoje uma rede designada por Trilho Internacional dos Apalaches. Do lado de lá do Atlântico, o trilho com mais de 3.500 quilómetros é percorrido há décadas por milhares de caminhantes. Calcula-se que, nos seus 90 anos de existência, vinte mil caminhantes o tenham completado. Aqui, não só o trilho é mais recente e muito menos extenso, como é ainda, para a maioria dos portugueses, totalmente desconhecido.



Se as rochas e a orogenia destes acidentes geográficos é idêntica, tudo o resto parece distinto. Ao contrário das coníferas, bétulas e áceres, abunda aqui uma vegetação arbustiva e composta por urzes, carquejas, estevas e medronheiros. Alguns sobreiros exibem a sua cortiça carbonizada por incêndios sucessivos. A paisagem é árida e conta uma história antiga. No Cabeço Mosqueiro, foram encontrados vestígios de um castro pré-romano e a ocupação humana perde-se no tempo. O cultivo de pequenas courelas de cereal em solos esqueléticos, a utilização da madeira como combustível, as queimadas e o pastoreio excessivo e por fim a introdução de espécies exóticas de eucaliptos e acácias deixaram os solos, já de si pobres, mais depauperados.

Georota do orvalhoGeorota do orvalho


Um macho de cartaxo, uma das espécies nidificantes mais precoces da nossa fauna, vigia e defende o seu território do alto de um jovem pinheiro.

Em 2017, um incêndio ameaçou mais uma vez o Orvalho e as chamas acercaram-se das habitações. Os autarcas locais, saturados do ciclo repetitivo de fogos florestais, deitaram mãos à obra e plantaram 50 mil medronheiros na encosta do cabeço. Este arbusto é um digno representante da flora autóctone que tem aproveitamento comercial através da valorizada aguardente.

Os esforços de valorização da paisagem não se ficaram por aí. Quinze anos antes tinham sido edificadas estruturas rudimentares que facilitavam o acesso a caminhantes. Consumidas pelas chamas de 2017, foram requalificadas com passadiços. Talvez estas estruturas tenham entrado na moda e em muitos casos sejam irrelevantes ou até ambientalmente questionáveis, mas, no Orvalho, é fácil de aceitar qualquer estratégia que ajude a trazer visitantes.

Georota do orvalhoGeorota do orvalho


A vegetação exuberante junto das linhas de água contrasta com os matos adaptados às encostas áridas da serra. Este jovem feto coloniza uma área ardida nos anos anteriores.

Detenho-me num miradouro intermédio enquanto o Sol se dissolve na neblina do horizonte. Estas montanhas não são as mais espectaculares que já vi, nem a floresta é frondosa, mas há no cenário à minha frente uma beleza áspera e austera. Detecto uma vocalização familiar nos arbustos e vejo emergir um sublime dom-fafe. Observamo-nos a curta distância por instantes antes de ele voar e tornar um pouco mais abaixo na encosta. Lembro-me de um livro que li há 20 anos na altura em que visitei pela primeira vez a região: “A Arte de Viajar”, do divulgador de filosofia Alain de Botton. Recordo um capítulo em que o autor se questionava sobre aquilo que torna determinado cenário mais atraente do que outros. No turismo moderno, o fascínio pelos cenários idílicos que transportam o visitante para um éden idealizado são paradoxais. No Orvalho, a história e a natureza entrecruzam-se numa narrativa de migrações para as cidades e para o estrangeiro e de resistência ao que as elites urbanas designam com sobranceria por “País profundo”. O adágio do poeta victoriano Thomas Hardy de que encontrar beleza na fealdade é a missão dos poetas é injusto para com esta paisagem que, não sendo feia, desafia os mais comuns estereótipos de beleza.

A Georota do Orvalho (PR3) termina no alto do Cabeço Mosqueiro depois de percorrer nove quilómetros e de vencer 900 metros de desnível. O trajecto sinuoso parte do centro da aldeia em direcção à maior atracção da região, a Fraga de Água d’Alta. Após atravessar campos agrícolas na periferia da aldeia, uma bifurcação indica a GR38 – Grande Rota Muradal Pangeia que segue a cumeada da serra do Muradal. Um pouco mais à frente, depois de um antigo moinho de rodízio, a ribeira precipita-se no vazio. O espectáculo é impressionante no fim de uma época de chuvas já que no estio o pequeno caudal se resume a pouco mais do que um fio de água. Mesmo nessa estação, a ribeira de Água d’Alta mantém o vale fresco durante o ano.

Georota do OrvalhoGeorota do Orvalho


A Fraga de Água d’Alta é uma das principais atracções da GeoRota do Orvalho e do Geopark Naturtejo, o primeiro em Portugal integrado pela UNESCO na rede mundial de geoparques, em 2006.

A jusante da cascata, os azereiros oferecem um vislumbre da vegetação primitiva que vai perdendo espaço a cada incêndio e com o avanço das espécies exóticas invasoras. No leito da ribeira, depósitos de hidróxido de ferro revelam filões de minérios que estão na origem de um passado marcado por intensa actividade mineira na região. O caminho prossegue junto da ribeira e, nas margens, árvores cobertas de musgo, líquenes e fungos relembram-nos a qualidade do ar que respiramos. Um pouco mais a jusante, a represa de um moinho cria um pego conhecido como Lagoa das Lontras. Não tenho a sorte de as ver, mas o complexo de construções rurais que incluem o moinho, a casa do moleiro, anexos agrícolas e muros de pedra que retinham a terra das hortas abandonadas nas últimas décadas é mais uma lembrança de um estilo de vida em ligação íntima com a natureza que continua a perder espaço na modernidade.

O caminho afasta-se agora desta linha de água e vence uma cumeada antes de se precipitar de novo no vale da ribeira do Orvalho. As flores anunciam a chegada da Primavera e, num exuberante folhado, uma escrevedeira-de-garganta-cinzenta vigia-me discretamente. O caminho recomeça a subir e a escadaria faz o sangue pulsar nas artérias dos mais bem preparados fisicamente. A perspectiva do alto do miradouro vale o esforço.

Georota do orvalhoGeorota do orvalho

A saxifraga-comum está adaptada a crescer em fendas rochosas.

A GeoRota do Orvalho é um portal para uma região que poucos conhecem e que não merece continuar esquecida. O turismo que este trilho bem desenhado e assinalado acalenta será instrumental, bem como as iniciativas de revalorização e renaturalização da paisagem. Num mundo em que os serviços dos ecossistemas são vitais para combater as alterações climáticas, regiões como esta podem conquistar uma nova centralidade e o mínimo que podemos fazer é sair das auto-estradas e quebrar o ciclo de repetição dos mesmos destinos de sempre.